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Globo de Ouro: Ana Pessoa, jornalista e fundadora da marca @Kami_no_michi, em uma crônica sobre o cineasta Walter Salles

A comemoração foi boa aqui em Tóquio, no nosso pequeno QG em Shibuya. Um Globo de Ouro muito esperado e merecido para uma brilhante atriz brasileira cuja mãe deveria ter ganhado o Oscar há 25 anos (Fernanda Montenegro – ou “Fernandona” – perdeu para uma Gwyneth Paltrow sem graça sob a produção do então capo do cinema Harvey Weinstein – não precisa ler nas entrelinhas).

Mas tudo o que você precisa saber sobre a grande vencedora, Fernanda Torres, a mídia já cobriu bem… E eu, que não aparecia nesta plataforma há algum tempo, senti vontade de escrever não sobre a força das mulheres latinas, ou da grande linhagem de atrizes brasileiras, mas sobre uma personagem: o cineasta mais discreto, rico e premiado do Brasil: Walter Salles.

Nunca acreditei em coincidências: em 1994-95, Salles dirigiu Fernanda Torres no que considero um dos melhores filmes brasileiros e latino-americanos de todos os tempos, “Terra Estrangeira”. Para os brasileiros que, como eu, decidiram se exilar de um país tão complicado quanto bonito, corrompido tanto quanto riquíssimo em recursos naturais, país atormentado por uma ditadura e que desenvolveu uma democracia com um sistema absolutamente não representativo – golpe é ameaça sempre presente -, para quem está em terra estrangeira, este filme é doloroso, poético e um clássico. E uma fatalidade: não tem um final feliz.

Agora, quase 30 anos depois, Salles e Fernanda Torres parecem dar ‘continuidade’ a “Terra Estrangeira” ao contar a história da viúva Eunice Paiva que, durante 40 anos, lutou para descobrir o que aconteceu com seu marido pelos militares que o prenderam, torturaram e desapareceram com seu corpo. Caro leitor, ainda não vi “Ainda Estou Aqui”, então o risco de spoilers é zero. Mas do Plano Collor voltando ao tempo em que você poderia desaparecer como os dinossauros… Será que as coisas mudaram?

Salles, filho de diplomata e banqueiro, filho de Elisinha, uma mente brilhante que partiu deste mundo muito cedo, irmão mais velho do documentarista João Salles (que dirigiu “Notícias de uma Guerra Particular”, filme assustador que conta a guerra civil que o Brasil vivia/vive – e que não é notada nem pelos seus habitantes, nem pela mídia estrangeira), irmão também de Pedro Salles, cadeirante e sócio do maior banco brasileiro, Salles vem de uma família fora do comum.

Nascido no coração da alta burguesia carioca (seus pais são mineiros), criado numa casa modernista na Gávea, Salles abraçou duas causas impossíveis: fazer "Saiba mais sobre" arte e viver no Brasil.

Eu o “conheci” em 2001, quando ele foi à Escuela de Cine y TV em Cuba para dar uma palestra. Na época, ele estava produzindo o filme “Diários de Motocicleta” (Oscar de Melhor Canção – Jorge Drexler). Eu era estudante de documentário (mas já uma veterana de ‘guerra’, editora na TV Globo) e atuei como tradutora improvisada – já que ele, atencioso e muito educado, fazia questão de se fazer entender na língua do país onde estava, espanhol.

Mais tarde, quando eu era editora no telejornal Bom Dia Brasil, e estava pesquisando para um livro – nunca publicado – escrito por outro cineasta, Arnaldo Jabor, nos encontramos por acaso num jantar e ele foi – novamente – muito educado e simpático.

Walter é um bilionário. Não um bilionário qualquer: ele é o cineasta mais rico do mundo. E a imprensa adora falar sobre isso.

Mas ele é um bilionário como nenhum outro: é sócio com o irmão em uma pequena produtora – a Video Filmes, produtora audiovisual independente criada em 1985 – e de tempos em tempos ambos lançam projetos cuidadosamente pesquisados e produzidos. Ambos vivem de fazer cinema. Ambos moram no Brasil.

Não tenho notícias de que eles tenham usado leis de incentivo para concluir seus projetos – e se tivessem, não há problema algum.

Walter poderia ter uma vida tranquila, longe dos holofotes, poderia fazer o que quisesse – até fazer nada, se fosse o caso.

Mas, como eu disse, ele discretamente escolheu ser um brasileiro morando no Brasil (não, caro leitor – a vida dos ricos é diferente, mas não menos perigosa. A violência é a invenção mais democrática do homem e escolher ser rico no Brasil é para os fortes).

E mais inacreditável ainda: ele escolheu ser artista. E decidiu falar dos nossos descaminhos de forma poética, crítica e com produção impecável, conteúdo profundo.

Como mulher, celebro o grande feito de Fernanda Torres, essa Gigante que, quando jovem, foi premiada como melhor atriz em Cannes (num filme de Jabor!) e, agora, como uma mulher madura, ganhou um prêmio na terra da indústria (leia-se pastelaria) do cinema – recebeu com elegância e fez um discurso político que Kidmanns ou Jolies dificilmente fariam.

Como brasileira, admiro e encontro encorajamento em celebrar a existência (ou devo dizer resistência) de Walter Salles Jr.

Como cineasta, ele é um grande antropólogo da condição social dos brasileiros.

Vida longa a Salles. Vida longa!


Ana Pessoa é jornalista, empresária, fundadora da marca @Kami_no_michi e estudiosa do Xintoísmo.

Crédito da Imagem: Gal Oppido

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